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sexta-feira, 31 de maio de 2013

tudo o que comigo se passou

Perto do final da manhã a escrita parou e levantei a cabeça, permanecendo com os olhos postos no horizonte. Já sabia de antemão que iria chegar a este ponto da minha carta para a Diana, em que me veria numa encruzilhada feita do encontro entre estas duas estradas. A estrada da vida que eu escolhi e a estrada da vida que me aconteceu.

Decidi então dirigir-me descalço sobre a areia quente até à linha da maré vazia. Pensando, enquanto procurava ver, por detrás daquela linha azul, o muito que afinal vai ter de ficar por lhe contar. Enquanto caminhava, lembrei-me daquele tempo em que, estando nós já longe um do outro, os dias se expandiam, fugiam para bem longe de nós, revelando à nossa volta um mundo que ia ficando maior a cada momento passante.

Ainda hoje me espanta ter sobrevivido à vida que levei, sobretudo porque sempre tive tendência para encontrar o aborrecimento naquilo que mais me consumia. Se é por milagre que eu continuo aqui, existirá com certeza uma razão para isso, porque os milagres não acontecem por acaso. Seria talvez um milagre ainda maior que eu e a Diana nos voltássemos a encontrar um dia. Quem sabe se esse dia chegar, tudo possa ser diferente, ainda que por breves instantes. Quem sabe nos possamos encontrar, num tempo e num lugar onde os dias já não nos escapem. Onde como numa grande mudança de maré, a corrente da vida inverta o seu curso e os dias possam de novo vir ao nosso encontro. Talvez então eu possa finalmente contar-lhe tudo o que comigo se passou. Mas suponho que seja quase sempre assim. Não nos apercebemos que estivemos com alguém pela ultima vez até ser tarde demais.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Como era de esperar, depois dos dias que passei em Pinamar, esperava-me uma semana complicada no escritório. Reuniões, prazos a terminar, correspondência para despachar. O Paco levou-me três vezes a almoçar, só para ter a certeza de que estava tudo bem. Na verdade, todos estes dias foram passados numa espécie de zona intermédia de passagem entre duas possíveis existências, pensando se algum dia teria a coragem de realmente enviar aquela carta. Uma coisa era pensar. Outra, muito diferente, seria deixá-la no correio. Depois de o fazer, já não teria como voltar atrás. Todo este regresso ao passado que durante os últimos dias me tinha permitido estava a absorver-me para muito longe. Para um lugar qualquer que ficava entre o meu Buenos Aires presente e a minha Lisboa distante, muito para lá da minha querida e pacata cidade de Pinamar. Para um lugar perdido no meio do oceano, onde nem o tempo, nem o vento corriam sobre as águas paradas e mornas do equador.
Foi então que me lembrei daquele estranho sonho que me acordou, na madrugada do meu quarto dia em Pinamar. Parecia que a chave que se desfazia nas minhas mãos era agora aquela carta. A carta que agora me parecia como o único meio de dar o devido descanso aos fantasmas que durante todos estes anos tinham ficado suspensos entre este mundo e aquele.

Na sexta-feira ao fim da tarde, entrei num conhecido pub da Recoleta, por volta da hora de jantar. Mal cheguei, pedi um whisky e fiquei por uns momentos inclinado sobre o balcão, a olhar o vazio. Um barman fardado servia as bebidas com gestos precisos e silenciosos. De tal maneira que quase não se dava pela sua presença. No ar soava a música Bye Bye Blackbird, do Miles Davis, um jazz tão meu conhecido que me parecia vir de dentro. Num canto da sala ouvia-se um grupo falar mais alto apontando para uma televisão pendurada na parede. Através do fumo podia ver o presidente Néstor Kirchner dirigir-se à nação, presumo que numa importante comunicação. Noutros tempos ter-me ia importado com aquilo. Teria pensado nas implicações, nos segredos, nas possíveis instruções que depois daquilo poderiam vir de Lisboa. Mas eu já não estava interessado no que se passava do lado de fora da minha vida e das vidas daqueles que amava. Tinha-se instalado em mim um certo desencanto sobre tudo o que não me parecia ter uma ligação direta com o que se passava no interior do meu mundo secreto. Mas ao mesmo tempo, não deixava de ser irónico que ali estivesse eu, de olhos fixados num ponto distante que ficava bem para lá daquela parede, junto de alguém que se encontrava a meio mundo de distância dali.
Enquanto esperava pelo segundo whisky, reparei na parede que tinha à minha frente, nas costas do barman que me servia. Era forrada por uma madeira escura, preenchida em cima por uma enorme estante antiga, cheia de garrafas e copos invertidos, suspensos como morcegos. Mais abaixo, ao nível dos meus olhos, estavam pendurados espelhos de vários tamanhos, em lindas molduras de talha dourada, adornadas com entalhes de diferentes estilos. Talvez eles estivessem ali para mostrar àqueles que no fundo de um copo procuram as respostas às suas contradições antigas, que elas estão afinal enterradas bem no fundo de nós. Detidas em prisões de silêncio, à espera de serem libertadas a partir dos círculos mais profundos dos nossos tortuosos seres.

Nisto, sinto alguém a entrar no bar e a sentar-se no banco imediatamente ao lado do meu. Estranhei, porque era a única pessoa sentada naquele balcão. Mas assim que olhei discretamente, vi que era o meu tio. Assim que se sentou, pediu um conhaque e disse, naquele seu tom do costume, aparentemente desinteressado mas profundo:
― Como não estavas em casa, resolvi vir até aqui ver se te encontrava. À nossa!
Estava com o seu fato azul-marinho, de camisa branca de botão aberto e um lenço de seda claro no bolso da frente. Impecável como sempre. Não sei como me encontrou, sobretudo tendo em conta que não costumo frequentar aquele lugar. De qualquer maneira era bem-vindo. Podíamos ficar ali a noite inteira que ele nunca iria tentar saber o que é que eu fazia naquele lugar, sem outra companhia do que aquele copo onde morriam lentamente duas pedras de gelo. A ele bastava-lhe estar ali, para que eu pudesse desabafar, se assim o quisesse. Mesmo assim fiquei curioso:
― Como é que veio aqui parar? Eu podia estar num milhão de sítios diferentes.
Ele sorriu e assim permaneceu algum tempo, sem responder, com a sua invejável pose de galã, olhando para longe. Depois, deu mais um trago no seu conhaque e respondeu:
― Eu até podia dizer-te como é que cheguei aqui. Podia falar-te do tempo em que eu tinha grandes planos, do tempo em que deixei de me importar e do dia em que depois acordei. ― Disse, de olhos semicerrados, como se estivesse a olhar para uma luz. E continuou:
― Com os anos, percebi que não valia a pena perder tempo com arrependimentos, sabes porquê? Porque todos sonhamos ser perfeitos. Idealizamos demais, e acabamos quase sempre por ser demasiado duros connosco próprios. Concentra-te no essencial. O resto, deixa ir.
Os seus olhos olhavam em frente, através do balcão, para aquela parede pejada de espelhos. E enquanto acendia um cigarro continuou:
― Tu sabes que podes falar comigo não sabes? ― Disse, voltando a colocar o isqueiro no bolso do casaco e deixava o fumo sair, olhando-me de lado. Depois, tirou lentamente o cigarro da boca e para minha surpresa perguntou: ― passa-se alguma coisa contigo?
― Nada de especial, tio. Ando em altura de balanços. ― Disse, sentindo-me subitamente desconfortável. Aquela pergunta tinha-me deixado cercado, à procura de um caminho por onde fugir à admissão da falta de coragem que estava a sentir.
― Meu filho, o segredo não está em encontrarmos aquilo que idealizámos e que nunca vimos nem sabemos se existe. Está em descobrirmos que nada do que precisamos para ser felizes está fora de nós. E em percebermos que as melhores coisas que a vida tem estão escondidas atrás daquelas com que nos cruzamos todos os dias. ― E enquanto fumava, continuou: ― Essa desorientação toca a todos. É sinal que não estás a olhar para o sítio certo.
― Como assim?
― Nunca te aconteceu num dia, de manhã, ao ir para o escritório, repetindo um caminho que já fizeste centenas de vezes, notares de repente em qualquer coisa nova, qualquer coisa em que nunca tinhas reparado antes?
― Claro que já. Às vezes basta olhar para cima.
― Pois é. Quem vive à procura daquilo que não tem, acaba por não se descobrir nem a si próprio, nem às coisas com que se vai cruzando pela vida fora. Quem vive numa permanente busca daquilo que não tem, acaba quase sempre por ficar pelo caminho.
Ao ouvir aquilo olhei para o lado e permaneci de copo levantado, interrompendo o movimento de o levar à boca. Isto significaria o quê? Que devia ficar quieto ou avançar? A Diana faz parte da minha história. Uma parte inacabada, por resolver. Foi então que lhe perguntei, surpreendido:
― Então devemos fazer o quê tio? Deixar de procurar alcançar as coisas que queremos para nós?
Ele olhou-me nos olhos sobre o ombro, enquanto apagava o cigarro que tinha na mão, e disse sorrindo:
― Em primeiro lugar, é preciso deixar de ter medo. Medo de falhar. As pessoas precisam de se dar umas às outras como se não houvesse amanhã. ― Ao dizer isto, abriu os braços e notei nos seus olhos um fogo que não estava lá antes, uma faísca de indignação que o tomou de repente. ― Olhando à nossa volta, sobretudo para a tua geração, o que vemos, é que já ninguém dispensa a sua bolha particular de segurança, as suas portas blindadas, fechaduras, trancas e trincos, os seus telemóveis e seguros de vida e cintos de segurança. Já ninguém arrisca o pescoço pelos outros ou se atira de cabeça da prancha mais alta da piscina para conquistar a miúda mais gira do sítio.
Desatei a rir-me com o que dizia. Ele tinha razão. E enquanto falava gesticulando como um italiano, acendeu mais um cigarro. E continuou, dizendo:
― As pessoas têm medo. E é por causa desse medo, que o amor se tem tornado numa palavra vazia que acenamos ao longe uns aos outros, como uma bandeira, de ânimo leve e com consequências desastrosas. Uma palavra que nos apazigua e que nos enche de ilusão e conforto, mas sem um significado real porque não é realmente vivida. É por causa do medo que as pessoas se descartam umas às outras tão facilmente, com um simples estalar de dedos sempre que, por qualquer razão, a pessoa a quem se declarou amor deixa de servir, ou de fazer aquele sentido com que em tempos se idealizou. Aliás, nos dias que correm, não só o amor como o próprio Deus arriscam-se a perder curso legal na economia paralela dos afetos. Empacotados em caixotes empoeirados e relegados para as caves da memória, abandonados, porque causam alergia. Por causa do medo, o amor tornou-se ora numa doença a evitar, prevenir ou debelar, ora como a droga com que nos auto-medicamos constantemente, sob a forma das mais variadas promessas de que não temos verdadeira intenção de cumprir. Andamos todos de crista tolhida pelo medo. Foi por causa desse medo que o amor se tornou na droga dura dos tempos modernos. Sujeita a novas forças. Umas novas, outras nem por isso. Mas todas elas igualmente inconfessáveis. Eu até percebo que nos protejamos das desilusões. O que eu não percebo, é que as pessoas não vejam que ao fazerem isso, estão também a proteger-se desnecessariamente da própria vida.
Ao ouvir aquilo fiquei surpreso sobre como falava tão claramente para mim, ainda que não conhecesse as dúvidas que me tinham trazido àquele lugar. É verdade que agir tem os seus riscos, e é sempre mais fácil virar as costas. E talvez fosse o medo que me estava novamente a guiar na sua própria direção, levando-me a voltar as costas à decisão que certamente já teria tomado. Custava-me admitir que me faltava o arrojo e a resolução necessários para enviar aquela carta, que era tão sentida como inesperada para mim. Por isso contrapus, como se não quisesse continuar a ouvir:
― Mas tio, hoje em dia há outros valores. Hoje em dia já ninguém está para se chatear…
― É verdade. Mas mesmo assim, é importante não perdermos a capacidade para nos apaixonarmos. Eu posso já estar velho mas sei que termos a capacidade para nos apaixonarmos é a prova acabada de que ainda não sucumbimos ao mundo. Que não perdemos a guerra, que ainda não suicidámos a nossa criança interior. Repara: quem se apaixona fecha uma porta e abre outra. Fecha a porta de entrada dos problemas, angústias e desesperos da vida, porque vê no seu recém-encontrado amor a força, a solução e a saída para todos eles. Mas também não é menos verdade que abre uma outra porta que por vezes fica escancarada para nos marcar para toda a vida. É o obturador do coração, feito para abrir e fechar por breves instantes, apenas o tempo necessário para marcar na alma a fotografia de cada momento inesquecível.
Sorri e vi no velho uma ponta de nostalgia de quem via num daqueles espelhos, o reflexo de muitas histórias para contar.
― Mas temos que ter cuidado com o obturador. Se ficar aberto muito tempo, podemos ficar queimados...
― Pois, quando isso acontece, tudo passa para segundo plano e ficamos expostos aos caprichos dos outros e dos elementos. E aí, ou sofremos sozinhos essas queimaduras inúteis e devastadoras, curando as feridas e encaixando as derrotas de cabeça mais ou menos levantada, ou negociamos com o outro uma forma de escrevermos nas páginas ainda em branco do livro das nossas vidas, qualquer coisa que ainda possa ser aproveitada. Mas para isso é necessário mergulhar nas profundezas de quem gostamos para descobrir os cacos que ainda restam após a abertura descontrolada desse nosso obturador interior, e ainda assim regressarmos, de amor intacto.
― Isso não é nada fácil.
― Não, não é. Temos que manter a capacidade para nos apaixonarmos. Mas temos também de deixar de permitir-nos cair só porque, mal temos o que desejamos, voltamos a querer o que não temos. Como te disse, todos nós temos tudo o que precisamos para ser felizes. Só precisamos é de olhar para o que está à nossa volta.
― Como dizem os brasileiros, e tudo o que vier a mais, é bónus.
― É isso mesmo. E nunca te esqueças que todos nós, mesmo aqueles que não acreditam em milagres, desejam que eles aconteçam. Mas os milagres não existem a menos que aconteçam primeiro dentro de nós. É preciso perder o medo e confiar. Saber esperar para ver como o tempo é nosso amigo, pois além de ajudar a suavizar o passado, muitas vezes é ele mesmo, e mais ninguém, que acaba por destapar o que sentimos e revelar a pessoa que verdadeiramente somos. Porque é ele que nos dá as lições, que nos perdoa e que depois nos dá a redenção de que necessitamos.
― Passarmos das palavras a atos não é tão fácil assim.
Ele endireitou o indicador na minha direção, olhou-me nos olhos e disse:
― Pois não. Mas é uma coisa que tem de ser feita ainda que tenhamos de morrer a tentar. Esse é que é o bom combate. Fazer o milagre vir de dentro. Porque o amor não é nosso. Fomos feitos para senti-lo, isso é fácil. Mas criá-lo? Isso não é de nós. Talvez seja por isso que se acredita em Deus.

Depois de ouvir tudo aquilo, não pude conter as lágrimas, que tornei silenciosamente a empurrar para dentro. E poucos dias depois, lá enviei a carta para a última morada conhecida de Diana.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

o que nos mantém unidos


[excerto de carta a RBR]

(...) Há tanta coisa da minha infância de que eu já me esqueci, provavelmente a maior parte dela, mas de certeza que não a melhor. E mesmo que não me lembre de muita coisa, os encontros com pessoas daquele tempo só servem para provar a minha teoria de que os neurónios mais resistentes à passagem do tempo são os mais fortes e puros, e que por isso são os que acabam por ocupar-se das funções mais importantes, como a do coração. E repara que o coração não se limita a bombear sangue para todos os cantos do nosso corpo. Ele tem uma outra função, muito mais importante do que essa. O coração é aquilo que assegura a ligação entre as partes que compõem o todo. É o que de uma maneira ou de outra, nos mantém a todos unidos. É assim que com o tempo, ele se transforma na única coisa verdadeiramente capaz de nos salvar. (...)

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Como viver qualquer amor


Não se pode fazer com que nos ame alguém que não nos ame já.

Tudo o que podemos fazer é sermos a pessoa que o amor que sentimos nos faz querer ser. Deixar que a existência inspiradora de quem amamos nos provoque mudanças, apenas pela coragem que o simples amar nos dá. E fazermos justiça ao amor que sentimos não é mais do que fazer-se justiça a si próprio.

E quem sabe um dia, ao repararem na nossa obstinação amorosa em, por amor mudar o mundo com as próprias mãos, não se sintam também eles inspirados, da mesma maneira como eles nos inspiram a nós.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

o velho e o cardeal


            Naquele dia, o cardeal olhou para aquele velho impecavelmente bem vestido que tinha à sua frente e reparou no seu olhar envergonhado. O velho era um homem oriundo de uma família sem fortuna, fidalguia de província, simples por opção e generoso por natureza. Tinha sido bem-sucedido tanto nos negócios como na vida que levou. Apesar de ser um homem intencionalmente despojado e humilde, tinha como única extravagância o seu amor a automóveis e ao luxo de ter um carro onde pudesse caber a mulher e os seus oito filhos. Naquela bela tarde de domingo, o cardeal encontrava-se em sua casa numa visita de cortesia e de agradecimento. Por diversas vezes aquele velho tinha-lhe emprestado o seu Mercedes-Benz 600 Pullman landaulet, sempre que assim justificassem o critério do cardeal ou a solenidade da deslocação. 
            Estavam ambos sentados na longa mesa de pedra da eira da grande casa do velho, de costas para a casa e voltados para os campos que se estendiam a perder de vista, enquanto várias crianças ao longe brincavam. Tinham todos acabado de almoçar. A mulher do velho, as suas filhas e as duas criadas de cozinha levantavam a mesa e traziam mais uma das melhores garrafas de vinho que o velho guardava na sua famosa garrafeira.
            O cardeal então perguntou-lhe a razão de ser daquele seu olhar pensativo. Compungido, o velho confessou que na verdade não vivia a vida piedosa que julgava dele esperar o senhor cardeal. Não ia à missa, não frequentava a irmandade da paróquia, não assistia às procissões, e as únicas espécies sagradas em que tocava era o vinho da sua adega e os cozinhados da sua mulher. O cardeal então olhou para o velho e disse-lhe:
--- Sabes, João, os nossos olhos começam a perder qualidades logo desde o momento em que nascemos. Normalmente só reparamos nisto muito mais tarde, quando nos tornamos adultos e ganhamos aquilo a que damos o nome de vista cansada. Mas muito antes de isso acontecer, vão existindo várias coisas que, sem nos darmos conta, os nossos olhos deixam de poder ver. São coisas tão puras que a vista turva engana, e que por isso, vemos a certa altura melhor de olhos fechados porque só o coração as pode entender. Diz-me João, quem é que tu amas mais, a Cristo ou aos teus filhos?
            O homem olhou o cardeal ainda mais embaraçado com aquela pergunta que parecia feita para o enganar, ou pelo menos para destapar a sua enorme ignorância e falta de fé. Mas apesar de todo o temor reverencial que tinha pelo senhor cardeal, e como não sabia dizer nada que não fosse verdade, respondeu:
--- Perdoe-me o senhor cardeal, o Senhor tem o seu Cristo, mas para mim o meu Cristo são eles.
            Então, o cardeal levantou ligeiramente a cara e fechou os olhos com um leve sorriso, deixando que o sol lhe banhasse a cara. Depois, colocou ambas as mãos sobre a grande pedra de granito que servia de tampo da aquela enorme mesa de refeições e disse, como se estivesse a recitar as escrituras:
--- João, a tua fé te salvou. 
            Nesse momento, aquele velho cuja alma irrequieta havia impedido de ver o essencial, mas não de o praticar, começou a chorar sorrindo.
                Enquanto alguns se matam, mais ou menos lentamente, em obstinadas buscas até acabarem por descobrirem sozinhos, num remoto canto qualquer da terra, que a felicidade apenas se torna real quando partilhada, outros nascem conhecedores desta verdade que se revela a si mesma. Mas julgo que os restantes de nós passamos a maior parte dos dias ali pelo meio, uns menos conscientes e outros mais, vivendo esta procura quase até ao ponto de deixar que ela nos destrua. 
            Até ao dia em que, de repente, nos apercebemos daquilo que afinal de contas realmente importa. Esse dia é quase sempre o inicio de um longo percurso que consiste em finalmente aprendermos a avançar sem permitir que nos coloquemos no nosso próprio caminho. 
JAO

terça-feira, 9 de abril de 2013

sempre a somar

(...)
            Mas a perda não pertence exclusivamente à morte. Ela acontece-nos todos os dias, de todas as maneiras e feitios. Ela atinge-nos como rajadas fortes, que põem à prova a resistência dos nossos ramos ou que nos deixam no dorso as marcas que nos tornam reconhecíveis aos olhos de Deus, ou pelo menos dos cientistas que nos estudam, para aqueles que não acreditam Nele. São essas as marcas que, à distância, lhes permitem distinguir-nos uns dos outros.
            Quer queiramos quer não, a perda faz parte da vida e surge frequentemente sem nos avisar. Não nos deixemos guiar pela perda, querida Diana. Porque ainda que a cada instante que passa, todo o tipo de coisas nos estejam a ser tiradas, se olharmos com atenção, nunca será tarde demais para descobrirmos que, de uma maneira ou de outra, a vida é sempre a somar.

(...)

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Segundo dia

            Acordei a meio da manhã, de uma noite sem sonhos, ainda no sofá. Assim que me levantei, fui abrir as portadas da sala para descobrir que estava um dia morno de céu azul, já com uma leve brisa fresca, sinal de que o verão se aproximava do fim. A praia estava vazia e não havia qualquer outro sinal da tempestade da noite anterior, do que as marcas que a chuva tinha deixado na areia.
            Instalei de novo a mesa junto ao alpendre, entre as portadas abertas da sala e fui buscar um café forte. Depois, decidi fazer uma curta caminhada de pés descalços pela areia quente até junto da linha de água. 
            Nessa manhã, o mar estava revolto, e rugia com um barulho ensurdecedor. Do lado das dunas, existia uma paz absoluta, quase insuportável, em que o silêncio alternava com o violento calor do sol e da areia fervente. Assim que pisei a areia molhada, senti o alternar do calor do sol com a frescura da maresia que me refrescava a pele. No mar, tudo o que via mais se parecia com um campo de batalha, exercendo sobre mim tanto fascínio como o de uma fogueira a arder. As ondas quebravam de tal modo longe da costa que a partir dali mal podia ver o horizonte. Apenas mais ondas a quebrar, umas atrás das outras. Para onde quer que olhasse linhas intermináveis de espumas rolavam aproximando-se da praia, alternando com algumas zonas calmas onde o mar apresentava um azul metálico em que pairavam manchas de espuma dourada, como se de um animal ferido se tratasse. Depois das ondas explodirem na areia, as espumas iam e vinham alternadamente, seguidas pelo sonoro borbulhar que faziam enquanto recolhiam de volta ao mar.

            Tinham passado vários anos desde o dia em que descobrira aquela praia. Talvez por ser o ponto mais próximo do lugar de onde eu venho, que desde esse primeiro dia tenho a sensação de pertencer a este lugar. Tudo aqui me soa a familiar: o mesmo mar que nos liga e nos separa, os mesmos pinheiros mansos que entram pelo areal adentro, o assustador rugido das ondas que vêm de longe e abatem-se contra a areia de que é feito este meu castelo feito de dunas. Mas com o passar dos anos fui também sentindo que esta praia me pertencia, por todos os momentos que ali passei com muitos dos personagens do meu passado, alguns deles já desaparecidos. Por isso sempre que aqui chego apetece-me rever todos os recantos desta praia onde tantas vezes fui feliz. Como se a praia fosse um álbum de boas recordações que folheio enquanto a vou percorrendo. 
            Decidi por isso fazer uma caminhada pela areia. Olhei para a direita, depois para a esquerda, e escolhi um dos lados à sorte, como se ambos fossem dar ao mesmo lugar certo, bem para lá da linha do horizonte. 

            Hora e meia depois, enquanto regressava da minha caminhada para norte, pareceu-me ver ao longe um vulto parado no areal, ali para os lados de minha casa. De início pareceu tratar-se de alguém que vinha na minha direção, pelo que foi-se tornando mais nítido. Parecia ser o de uma mulher de longos cabelos negros, com uma túnica clara esvoaçante. Acelerei o passo, mas percebi que estava já a caminhar em direção ao povoado, um pouco mais para sul. Ainda ia distante quando cheguei à porção de praia que fica em frente a minha casa. Estava ofegante da minha corrida pela areia molhada. Olhando para o chão, notei num conjunto de pegadas na areia que guardavam a prova daquele desencontro. As pegadas mostravam que aquele vulto se aproximou do meu alpendre, tendo ali parado antes de voltar para trás. Teria sido alguém à minha procura? Não fazia sentido que chegasse vindo da praia em vez da estrada, a menos que fosse alguém que não tivesse problemas em ser seguido ou descoberto. Provavelmente seria apenas alguém que tivesse tido a mesma ideia que eu, e tivesse simplesmente resolvido dar uma caminhada pela praia. 
            Sorri e abanei a cabeça, voltando a pensar na pessoa paranóica e desconfiada que os últimos anos me tinham tornado. Tudo o que aprendi sobre técnicas de observação e a descodificação de sinais, tanto me ensinaram a ver para além das aparências, como a duvidar de tudo o que parece evidente. De tal maneira que muitas vezes julgo que nem mesmo os fantasmas me escapam, ou quem sabe seja eu que não lhes consiga escapar.
            Tal como os cadernos, também as pegadas que ali tinham ficado marcadas na areia, eram testemunhos de que alguém por ali tinha passado. Estava tudo ali, misturado com o sargaço que a maré cheia tinha espalhado pela praia. E tudo aquilo me cheirava a saudade. 
            Voltei para casa, onde tomei um duche morno seguido de uns calamares e um copo de vinho branco. Enquanto me preparava para mais um dia de escrita e regresso ao passado, sob a sombra do meu alpendre.



quarta-feira, 3 de abril de 2013

O início

            Há muito tempo que vivo em Buenos Aires. O tempo suficiente para que a vida que um dia deixei ameace dissolver-se finalmente na história e cair de vez no esquecimento. Hoje vejo claramente que da mesma maneira que um curso de água vai polindo a pedra e abrindo novos sulcos por onde escorrer, também o tempo nos vai moldando a memória, de acordo com o serpentear dos seus caprichos insondáveis. Com ele percebi não apenas que nos esquecemos mais de umas do que de outras coisas, segundo um critério pouco claro mas quase sempre surpreendente, mas também no quanto varia a noção que temos da sua passagem.
            No espaço de um ano tanto pode passar muito tempo, como tempo nenhum. Muitas vezes estamos tão concentrados no passado, que o decurso de doze meses não nos leve a qualquer lado. Nessas alturas, mesmo depois de todo aquele tempo ter passado por nós, sentimo-nos no ponto de partida, iguais ao que éramos no dia em que começámos. Aí, talvez possamos dizer que de facto parámos no tempo ou que para nós ele não chegou a passar. Mas se repararmos, é também nas alturas em que estamos mais presos aos nossos momentos menos felizes, que ficamos com a sensação de que o que passou foi afinal uma eternidade. Ou então que, depois de um ano cheio de aventuras e acontecimentos, nos seja fácil de notar afinal, no momento de olhar para trás, que tudo aquilo passou a correr. E mesmo nessas alturas, muitas vezes acabamos por nos ver obrigados a reconhecer, de tantas voltas a nossa vida deu, que durante todo aquele tempo crescemos, envelhecemos ou que a nossa vida de facto mudou. Porque uma grande mudança, ainda que ocorrida num curto espaço de tempo, pode levar a que nos tornemos irreconhecíveis, até para nós mesmos.
            Chega a ser engraçado como o tempo sem relógios tem destas coisas: de ser e de não ser ao mesmo tempo, consoante ele seja medido pelo que a sua passagem nos provoca, ou pela noção que dele vamos tendo. Dou um exemplo claro, tirado da minha experiência: há cerca de vinte anos mudei de cidade, de língua e de hemisfério, para um fuso horário totalmente diferente. E apesar de nem o ter sentido, todo o tempo que aqui passei foi feito de uma tamanha correria de pessoas, de lugares e de costumes, numa tal enxurrada de paixões e de abandonos, de amizades e de ausências, de alegrias e de saudades, que muito sinceramente, por tudo isto aqui me fez, mais me parece terem passado afinal quarenta.

            Eu sempre quis que o tempo importasse. Que não passasse por mim em vão, que me deixasse qualquer coisa, que me fizesse crescer. Talvez tenha vindo daí o gosto que sempre tive por relógios, sobretudo por relógios antigos. Talvez também por isso me tenha tornado, desde o dia em que aqui cheguei, num meticuloso registador de experiências, pessoas, cheiros, pensamentos e lugares, em pequenos cadernos numerados, que passaram a acompanhar-me em todas as alturas. São pequenos cadernos de capa preta, iguais aos que as crianças usam para os apontamentos da escola, que passei a trazer comigo, com as páginas presas por um elástico de borracha, que servia para impedir que se abrissem descontroladamente. E eram sempre do mesmo modelo, comprado numa papelaria mesmo aqui ao lado de minha casa, na Avenida Santa Fé. 
            Com os anos, os cadernos foram-se acumulando em cima da minha secretária, enchendo-se de tudo o que me ocorria, desde o assunto mais trivial ao episódio mais nebuloso de um passado que a cada dia se ia tornando mais longínquo, à custa de um futuro cada vez mais presente e inescapável. Umas vezes, com relatos floridos de acontecimentos passados; outras, deixando neles frases que pulavam insistentemente dentro da minha cabeça, sem qualquer direção definida, à procura de uma saída. 
            De início, aquilo que de um modo geral dominava os meus escritos e os meus pensamentos, era o passado então recente, da vida que tinha deixado para trás em Lisboa. Foram outros tempos, protagonizados no outro lado do mundo por alguém que hoje tenho dificuldade em reconhecer, e que me deixaram marcas profundas. Mas com o passar dos anos, a minha nova vida em Buenos Aires foi-se lentamente impondo, à medida em que a memória se decidia entre o que deixar para trás, e aquilo que devia ser acomodado nos lugares próprios da minha alma cada vez menos desconhecida.
            Vendo bem, este hábito iniciado mal cheguei a esta cidade, começou como uma forma de satisfazer o íntimo desejo de enterrar o meu passado. Escrevia para livrar-me de um enorme peso que ameaçava transbordar sobre tudo o resto. Na esperança de que, ao deixar nos cadernos o meu próprio sofrimento inconfessado, ficassem também definitivamente para trás todas as recordações da vida que havia deixado. Memórias que nenhum protagonista da minha nova vida em Buenos Aires poderá algum dia compreender

            Não tenho hoje qualquer contacto regular com nenhum daqueles que conheci durante a primeira metade da minha vida. Olhando para trás, é como se tivesse morrido e renascido num novo corpo e num novo hemisfério, para uma vida inteiramente nova. Depois de tudo o que se passou à volta daquele Natal de 1985, vi-me obrigado a largar o que tinha, e a crescer, praticamente de um dia para o outro, tudo o que não havia crescido até então. Tudo, exceto o que ficou guardado nos cadernos que ainda hoje conservo. Alinhados entre centenas de volumes, sobretudo de literatura jurídica, no meio da estante que fica por detrás da grande e antiga secretária em pau-preto, que ocupa o centro do meu pequeno escritório, no célebre Palácio Barolo.

            Com o passar dos anos, fui aos poucos e poucos abandonando a escrita e os cadernos. Julgo que nada contribuiu mais para isso do que a minha passagem pelos serviços secretos, sobretudo num período tão conturbado como aquele. Talvez seria de esperar que a minha vida de espião me tivesse tornado reservado, ou pelo menos mais reservado do que a maioria das pessoas. A partir do momento em que entramos nos serviços, deixamos tudo para trás. Perdemos a vida e a história, e ficamos entregues ao esquecimento, inteiramente ao serviço do país. Dizem que todos os agentes que não ficam pelo caminho acabam por aprender a arrumar o seu passado, distribuindo-o por várias gavetas, todas elas categorizadas de acordo com o princípio da necessidade de saber. E de tal maneira assim é, que muito recentemente ouvi um colega já antigo dizer, num misto de arrogância e de resignação, que o passado é como uma mulher de quem se gosta, porque é semelhante uma doença que leva tempo a sarar. Nunca cheguei a ver as coisas assim. Aliás, depois do que me aconteceu, fico contente por ter mantido os cadernos comigo, ainda que isso implicasse infringir algumas das regras do serviço. Assim, nem tudo ficou perdido.

            Até há muito pouco tempo, nunca tinha lido os meus cadernos. Não os tinha aberto sequer ― certamente não os mais antigos ― por uma espécie de pudor relativamente ao meu passado. Admito que talvez tivesse também um certo medo de que o desenterrar de memórias antigas pudesse soltar fantasmas difíceis de conter. Mas por serem cartas para um eu futuro, sempre tive para mim que os cadernos seriam abertos logo que a altura certa chegasse. Assim que os anos finalmente me dessem o distanciamento necessário para que me sentisse preparado para voltar a abri-los, um após o outro. 
            Os acontecimentos imediatamente anteriores à minha chegada a Buenos Aires tinham-me lançado afinal numa longa viagem à volta de mim mesmo. Uma viagem de que apenas agora me senti regressar, quando descobri que apenas estamos preparados para receber o amor das pessoas que amamos, quando descobrimos que já não precisamos delas. E para amá-las, quando mesmo assim, ainda as quisermos. 
            Passaram já muitos anos sem que eu tivesse esquecido a Inês. Passou também demasiado tempo desde que aquele miúdo, acabado de fazer vinte e três anos, aqui chegou. Tantos, que fiquei sem ter a certeza se ele ainda existia. E por isso mesmo, passei os últimos dias em arqueologias, lendo os meus estimados cadernos. Confesso que nada me tinha preparado para o que a sua leitura me iria proporcionar. Mas o momento tinha chegado. 

terça-feira, 2 de abril de 2013

Nunca conheci alguém que ficasse tão bonita com um buraquinho na camisola


Hoje passei pelo quiosque do Príncipe Real e estavas lá a falar com um tipo. Acho que ele era eu, mas não tenho a certeza nem isso me interessa. Ele só dizia disparates com um ar divertido enquanto te olhava nos olhos mas eu não prestei muita atenção a nada do que ele disse nem a nada do que se passava à vossa volta além de ti. Nem tentei ouvir sequer aquele segredo que a certa altura ele te contou e que te fez corar e fez com que fugisses à procura de um abrigo qualquer, como se as palavras dele fossem uma chuva de granizo ou um raio de sol vindo diretamente do verão da Catalunha. Porque muito sinceramente, nunca conheci alguém que ficasse tão bonita com um buraquinho na camisola.

Já não me lembro muito bem como é que estava o tempo hoje. Não sei se estavam nuvens ou o céu limpo, mas acho que não estava a chover. Devia estar bom porque não estavas de casaco e tinhas aquele buraquinho na camisola, na base da gola alta da tua camisola de algodão fino, mesmo acima do teu ombro direito. Aquele buraquinho ficava-te tão bem como tudo o resto. Também não reparei nada se estava muito ou pouco barulho ou muito ou pouco trânsito ou se havia sequer lugar para nos sentarmos na esplanada. Mas lembro-me de reparar no teu cabelo, apanhado como eu gosto, porque quando o usas assim ficas diferente de quando usas o cabelo solto, daquela maneira que tu sabes que eu gosto imenso de ver.

Não me lembro de quase nada, nem da cor da gravata, nem se estava com ou sem os meus óculos escuros nem por onde foram umas pessoas que eu cumprimentei segundos antes de tu chegares. Mas consegui reparar que estás sempre a puxar a franja para um lado e depois para o outro. Fazes imensas vezes isso. Com o primeiro gesto penteias-te e com o segundo despenteias-te. Não sei se é assim ou se é ao contrário porque na realidade acabas sempre penteada, mesmo quando não estás. Aliás, sempre que estou contigo fico com a sensação que o teu penteado está prestes a ser descoberto por alguém que vai fazer uma fortuna quando o lançar como a nova tendência da próxima estação.

Lembro me de pensar que estavas linda e amorosa como sempre, o que estranhamente está-me sempre a surpreender porque tudo em ti tem sempre a mesma novidade. Aliás, tudo o que tu fazes é inteligente. Até a tua timidez é esperta. Ela existe só para teres a certeza se eu tenho paciência para aturar as tuas hesitações, porque já sabes muito bem que as palavras são como as pessoas. Não valem nada se não estiverem acompanhadas de atos concretos. E por isso, baralhas-me de propósito, brincas comigo e com os meus medos e minhas inseguranças para ver se eu tenho coragem para passar por cima delas só para te conseguir falar e fazer rir. É tudo de propósito, mesmo as hesitações que tens e a forma como coras sempre que eu te dou um beijinho sem avisar. É tudo para ver até onde é que vai o meu descaramento.

Gosto imenso de todos os teus defeitos que já conheci. E como já adivinhei os que não conheço, estou à espera de lhes ser apresentado. Quando isso acontecer, prometo fazer um ar muito espantado de surpresa, para logo a seguir ignorá-los completamente. Que é o que devemos fazer sempre que somos apresentados a uma mulher bonita como tu.

quinta-feira, 7 de março de 2013

manhãs

todos os dias acordo mais ou menos com o mesmo cocktail de emoções. acordo quase sempre cheio de garra, curiosidade e a ponta de uma boa nostalgia que me faz sorrir. às vezes apetece-me abraçar a manhã como se ela fosse uma pessoa. uma pessoa em quem se confia e de quem nunca nos despediremos completamente. 
eu sou o que me trouxe até aqui: os erros, os mortos, as vitórias, tudo. não guardo uns com mais carinho dos que os outros, porque tudo faz parte da mesma massa de que sou feito. mas no geral, acho que tive sorte no software com que nasci. sobretudo porque durante as manhãs acontece-me não ter mais saudades do passado que do futuro. 
bom dia! 

terça-feira, 5 de março de 2013

Panama Sights Inc.

(...)
          Perto do final da manhã a escrita parou e levantei a cabeça, com os olhos fixados no horizonte. Já sabia de antemão que iria chegar a este ponto da minha carta para a Diana, em que me veria numa encruzilhada feita do encontro entre estas duas estradas. A estrada da vida que eu escolhi com a estrada da vida que me aconteceu. Decidi então dirigir-me descalço sobre a areia quente até à linha da maré vazia. Pensando, enquanto procurava ver, por detrás daquela linha azul, o muito que afinal vai ter de ficar por contar.
          Enquanto caminhava, lembrei-me daquele tempo em que, estando nós já longe um do outro, os dias se expandiam, fugiam para bem longe de nós, revelando à nossa volta um mundo que ia ficando maior a cada momento passante. 
          Ainda hoje me espanta ter sobrevivido à vida que levei, sobretudo porque sempre tive tendência para encontrar o aborrecimento naquilo que mais me consumia. Se é por milagre que eu continuo aqui, existirá com certeza uma razão para isso, porque os milagres nunca acontecem por acaso. Seria talvez um milagre ainda maior que eu e a Diana um dia nos voltássemos a encontrar. Quem sabe esse dia chegue e, ainda que por breves instantes, tudo possa ser diferente. Quem sabe nos possamos encontrar num tempo e num lugar onde os dias já não nos escapem. Onde como numa grande mudança de maré, a corrente da vida inverta o seu curso e os dias possam de novo vir ao nosso encontro. Talvez então eu possa finalmente contar-lhe tudo o que comigo se passou.


* *
*

          Foi mais ou menos na mesma altura em que eu e o Paco instalámos o nosso escritório, que recebi a primeira missão, aquela que durante os próximos anos iria levar-me várias vezes até à cidade do Panamá. Estávamos em 1990, tinha acabado de cair o muro de Berlim, caindo com ele também a guerra-fria. Fomos todos apanhados de surpresa porque do dia para a noite, sem qualquer aviso, o mundo deixou de estar dividido em dois enormes blocos. O Ocidente e o Oriente. O Bem e o Mal. Nós e Eles. Parece-me um absurdo pensar como é que alguma vez nos tenhamos deixado cair no erro de julgar que tudo pudesse ser assim tão simplesmente branco ou preto. Porque se ser e não ser é assim tão comum entre nós, não vejo como é que alguma vez nos tenha escapado que isso poderia também acontecer com o próprio mundo.
          Prova de tudo isso disso foi a invasão do Panamá, levada a cabo poucos meses antes pelos americanos, que provocou um rasto de destruição e morte indiscriminada de milhares de civis, em nome de um ideário que se veio a revelar inexistente. Sobretudo depois de, anos antes, terem usado o tráfico de droga como fonte de financiamento da revolta Sandinista na Nicarágua. Mas como um dos privilégios dos grandes é terem os pequenos a fazer o seu trabalho sujo, acabei por ver-me arrastado para o centro de uma tempestade, onde julgo que nunca deveria ter entrado.

          Tudo começou numa manhã de Dezembro, em que me chegou mais uma inesperada caixa por correio diplomático. Dentro dela estava um maço de folhas contendo instruções e informação secreta, e ainda, para minha surpresa, uma pequena pasta, uma chave com uma chapa identificadora com o número “8”, e uns óculos escuros. Li vagarosamente as instruções que ali estavam escritas no papel timbrado da Segunda Divisão. Na pasta, estava um ficheiro individual de uma agente espanhola chamada Gloria Espinoza. De acordo com as instruções, deveria encontrar-me com ela daí a cinco dias, num conhecido restaurante na cidade do Panamá. As chaves serviriam para levantar uma mala num dos cacifos do aeroporto de chegada.
          A necessidade de utilizar senhas e contrassenhas estava muito facilitada com a nova tecnologia incorporada nos óculos escuros, que faziam sobressair marcas de outro modo invisíveis na roupa dos agentes com que me deveria encontrar, o que servia para diminuir bastante os riscos envolvidos com os primeiros contactos com agentes amigáveis. Além disso, permitia-nos ler mensagens deixadas pelos mesmos agentes, com um tipo de tinta invisível ajustada às propriedades das novas lentes.
          Cinco dias depois, lá estava eu, minutos depois de aterrar, diante do cacifo número oito. Abri a pequena porta metálica sem esforço, e encontrei no seu interior um saco contendo uma arma, dinheiro e dois passaportes, um americano e outro colombiano. 
          Depois, segui para o restaurante onde me esperava a agente Gloria Espinoza. Apesar de ter chegado à hora marcada, já lá estava ela à minha espera. Era uma mulher bonita, de aspeto latino, de cabelos ondulados e olhos castanhos-claros. Estava suficientemente arranjada para parecer elegante sem dar nas vistas. Tinha um aspeto confiante, e como vim a perceber era uma muito focada naquilo que a trazia ali. 
          Tinha sido nomeada para a mesma missão que eu, como resultado de um programa de cooperação entre os serviços secretos portugueses e espanhóis. Ambas as agências queriam saber como eram organizadas as entradas de grandes quantidades de droga na Europa, que invariavelmente passava por ambos os países. Apesar de não ser de início muito claro como é que seria montada a operação, contávamos ainda com o apoio da Interpol, de onde acabaram por vir muitas das informações de que necessitámos para montar a operação. 

          Durante os últimos anos o Panamá havia-se tornado ao mesmo tempo um protetorado dos Estados Unidos e um destino dos dinheiros da maior parte dos traficantes colombianos. Ao mesmo tempo que a este e a oeste separava dois oceanos, a norte e a sul o Panamá separava também dois mundos completamente diferentes entre si. De facto, além da sua história recente, e de ser um importante ponto geográfico de passagem entre o Pacífico e o Atlântico, o Panamá estava a tornar-se especialmente famoso, por se ter tornado num reputado paraíso fiscal. Todos os dias chegavam e partiam procuradores com ordens de transferência que executavam na privacidade das casas bancárias panamenses, entre contas de sociedades criadas no próprio dia, para comprar e vender imóveis, contrair empréstimos, investir em indústria. Sociedades que compravam empreendimentos luxuosos, que depois arrendavam a outras sociedades. Empreendimentos onde os turistas tinham tanta utilidade como moscas na parede, servindo apenas para lhes emprestar uma capa de aparência que ajudava a esconder as inconfessáveis origens daqueles dólares. E como quem tinha acesso aos fundos, tinha também acesso à informação que pretendíamos, aquele era o local perfeito para montar a operação. 


          
          Eu e a Glória entendemo-nos muito bem desde o primeiro instante e rapidamente nos tornámos grandes amigos, facto que contribuiu sempre para o agilizar das operações. O nosso disfarce não exigia que mantivéssemos a aparência de uma relação amorosa; éramos apenas sócios. Em espionagem, todo o tipo de disponibilidade aumenta as possibilidades de infiltração, facto que poderia vir a provar-se ser de grande utilidade.
          Depois de algumas semanas passadas a ambientar-nos à cidade, montámos nos meses seguintes a Panama Sights Inc., uma empresa de concierge sedeada no hotel Marriott. A empresa baseava-se numa parceria conseguida sobretudo a troco de muito do charme de Glória, que num ápice se tornou próxima do diretor do hotel. Era o local onde ficavam normalmente hospedados os convidados de Estado e os jornalistas das principais cadeias informativas. Mas era também onde se vinham hospedar os homens de negócios que ali procuravam encontrar, muito mais do que onde investir, onde esconder o seu dinheiro
          Contratámos vários funcionários locais que sabiam muito do que se passava por ali, e que nos serviam como inocentes úteis, fornecendo-nos todo o tipo de informações úteis. Sabiam quem chegava, quem partia e para onde, quais os players mais importantes da cidade. Se quiséssemos seguir alguém, encontrava-se sempre um modo de fornecer motoristas, veículos com localizador, etc.. Muitas vezes a maior parte da informação que recebíamos vinha dos próprios clientes. Fosse pelos pedidos especiais que nos faziam, pedindo um local para um encontro discreto, ou por nos pedirem diretamente informação sobre como chegar até certa pessoa. 

          Olhando friamente, a maneira mais fácil de obter a informação que de outro modo permaneceria atrás de portas fechadas vinha, não dos nossos serviços ou do descuido dos viajantes que nos procuravam, mas sim dos vícios que cada um tinha. Dizem que cada homem tem um preço, mas o que cada homem tem é um vício. Hoje estou convencido de que aqueles que se vendem por um preço mais alto são apenas aqueles que melhor conhecem a difícil arte de ocultar o vício que os possui. Tenho a certeza que muitos ficariam surpresos ao descobrirem o tipo de coisas capazes de seduzir aqueles que apenas se encontram de passagem.
(...)