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terça-feira, 5 de março de 2013

Panama Sights Inc.

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          Perto do final da manhã a escrita parou e levantei a cabeça, com os olhos fixados no horizonte. Já sabia de antemão que iria chegar a este ponto da minha carta para a Diana, em que me veria numa encruzilhada feita do encontro entre estas duas estradas. A estrada da vida que eu escolhi com a estrada da vida que me aconteceu. Decidi então dirigir-me descalço sobre a areia quente até à linha da maré vazia. Pensando, enquanto procurava ver, por detrás daquela linha azul, o muito que afinal vai ter de ficar por contar.
          Enquanto caminhava, lembrei-me daquele tempo em que, estando nós já longe um do outro, os dias se expandiam, fugiam para bem longe de nós, revelando à nossa volta um mundo que ia ficando maior a cada momento passante. 
          Ainda hoje me espanta ter sobrevivido à vida que levei, sobretudo porque sempre tive tendência para encontrar o aborrecimento naquilo que mais me consumia. Se é por milagre que eu continuo aqui, existirá com certeza uma razão para isso, porque os milagres nunca acontecem por acaso. Seria talvez um milagre ainda maior que eu e a Diana um dia nos voltássemos a encontrar. Quem sabe esse dia chegue e, ainda que por breves instantes, tudo possa ser diferente. Quem sabe nos possamos encontrar num tempo e num lugar onde os dias já não nos escapem. Onde como numa grande mudança de maré, a corrente da vida inverta o seu curso e os dias possam de novo vir ao nosso encontro. Talvez então eu possa finalmente contar-lhe tudo o que comigo se passou.


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          Foi mais ou menos na mesma altura em que eu e o Paco instalámos o nosso escritório, que recebi a primeira missão, aquela que durante os próximos anos iria levar-me várias vezes até à cidade do Panamá. Estávamos em 1990, tinha acabado de cair o muro de Berlim, caindo com ele também a guerra-fria. Fomos todos apanhados de surpresa porque do dia para a noite, sem qualquer aviso, o mundo deixou de estar dividido em dois enormes blocos. O Ocidente e o Oriente. O Bem e o Mal. Nós e Eles. Parece-me um absurdo pensar como é que alguma vez nos tenhamos deixado cair no erro de julgar que tudo pudesse ser assim tão simplesmente branco ou preto. Porque se ser e não ser é assim tão comum entre nós, não vejo como é que alguma vez nos tenha escapado que isso poderia também acontecer com o próprio mundo.
          Prova de tudo isso disso foi a invasão do Panamá, levada a cabo poucos meses antes pelos americanos, que provocou um rasto de destruição e morte indiscriminada de milhares de civis, em nome de um ideário que se veio a revelar inexistente. Sobretudo depois de, anos antes, terem usado o tráfico de droga como fonte de financiamento da revolta Sandinista na Nicarágua. Mas como um dos privilégios dos grandes é terem os pequenos a fazer o seu trabalho sujo, acabei por ver-me arrastado para o centro de uma tempestade, onde julgo que nunca deveria ter entrado.

          Tudo começou numa manhã de Dezembro, em que me chegou mais uma inesperada caixa por correio diplomático. Dentro dela estava um maço de folhas contendo instruções e informação secreta, e ainda, para minha surpresa, uma pequena pasta, uma chave com uma chapa identificadora com o número “8”, e uns óculos escuros. Li vagarosamente as instruções que ali estavam escritas no papel timbrado da Segunda Divisão. Na pasta, estava um ficheiro individual de uma agente espanhola chamada Gloria Espinoza. De acordo com as instruções, deveria encontrar-me com ela daí a cinco dias, num conhecido restaurante na cidade do Panamá. As chaves serviriam para levantar uma mala num dos cacifos do aeroporto de chegada.
          A necessidade de utilizar senhas e contrassenhas estava muito facilitada com a nova tecnologia incorporada nos óculos escuros, que faziam sobressair marcas de outro modo invisíveis na roupa dos agentes com que me deveria encontrar, o que servia para diminuir bastante os riscos envolvidos com os primeiros contactos com agentes amigáveis. Além disso, permitia-nos ler mensagens deixadas pelos mesmos agentes, com um tipo de tinta invisível ajustada às propriedades das novas lentes.
          Cinco dias depois, lá estava eu, minutos depois de aterrar, diante do cacifo número oito. Abri a pequena porta metálica sem esforço, e encontrei no seu interior um saco contendo uma arma, dinheiro e dois passaportes, um americano e outro colombiano. 
          Depois, segui para o restaurante onde me esperava a agente Gloria Espinoza. Apesar de ter chegado à hora marcada, já lá estava ela à minha espera. Era uma mulher bonita, de aspeto latino, de cabelos ondulados e olhos castanhos-claros. Estava suficientemente arranjada para parecer elegante sem dar nas vistas. Tinha um aspeto confiante, e como vim a perceber era uma muito focada naquilo que a trazia ali. 
          Tinha sido nomeada para a mesma missão que eu, como resultado de um programa de cooperação entre os serviços secretos portugueses e espanhóis. Ambas as agências queriam saber como eram organizadas as entradas de grandes quantidades de droga na Europa, que invariavelmente passava por ambos os países. Apesar de não ser de início muito claro como é que seria montada a operação, contávamos ainda com o apoio da Interpol, de onde acabaram por vir muitas das informações de que necessitámos para montar a operação. 

          Durante os últimos anos o Panamá havia-se tornado ao mesmo tempo um protetorado dos Estados Unidos e um destino dos dinheiros da maior parte dos traficantes colombianos. Ao mesmo tempo que a este e a oeste separava dois oceanos, a norte e a sul o Panamá separava também dois mundos completamente diferentes entre si. De facto, além da sua história recente, e de ser um importante ponto geográfico de passagem entre o Pacífico e o Atlântico, o Panamá estava a tornar-se especialmente famoso, por se ter tornado num reputado paraíso fiscal. Todos os dias chegavam e partiam procuradores com ordens de transferência que executavam na privacidade das casas bancárias panamenses, entre contas de sociedades criadas no próprio dia, para comprar e vender imóveis, contrair empréstimos, investir em indústria. Sociedades que compravam empreendimentos luxuosos, que depois arrendavam a outras sociedades. Empreendimentos onde os turistas tinham tanta utilidade como moscas na parede, servindo apenas para lhes emprestar uma capa de aparência que ajudava a esconder as inconfessáveis origens daqueles dólares. E como quem tinha acesso aos fundos, tinha também acesso à informação que pretendíamos, aquele era o local perfeito para montar a operação. 


          
          Eu e a Glória entendemo-nos muito bem desde o primeiro instante e rapidamente nos tornámos grandes amigos, facto que contribuiu sempre para o agilizar das operações. O nosso disfarce não exigia que mantivéssemos a aparência de uma relação amorosa; éramos apenas sócios. Em espionagem, todo o tipo de disponibilidade aumenta as possibilidades de infiltração, facto que poderia vir a provar-se ser de grande utilidade.
          Depois de algumas semanas passadas a ambientar-nos à cidade, montámos nos meses seguintes a Panama Sights Inc., uma empresa de concierge sedeada no hotel Marriott. A empresa baseava-se numa parceria conseguida sobretudo a troco de muito do charme de Glória, que num ápice se tornou próxima do diretor do hotel. Era o local onde ficavam normalmente hospedados os convidados de Estado e os jornalistas das principais cadeias informativas. Mas era também onde se vinham hospedar os homens de negócios que ali procuravam encontrar, muito mais do que onde investir, onde esconder o seu dinheiro
          Contratámos vários funcionários locais que sabiam muito do que se passava por ali, e que nos serviam como inocentes úteis, fornecendo-nos todo o tipo de informações úteis. Sabiam quem chegava, quem partia e para onde, quais os players mais importantes da cidade. Se quiséssemos seguir alguém, encontrava-se sempre um modo de fornecer motoristas, veículos com localizador, etc.. Muitas vezes a maior parte da informação que recebíamos vinha dos próprios clientes. Fosse pelos pedidos especiais que nos faziam, pedindo um local para um encontro discreto, ou por nos pedirem diretamente informação sobre como chegar até certa pessoa. 

          Olhando friamente, a maneira mais fácil de obter a informação que de outro modo permaneceria atrás de portas fechadas vinha, não dos nossos serviços ou do descuido dos viajantes que nos procuravam, mas sim dos vícios que cada um tinha. Dizem que cada homem tem um preço, mas o que cada homem tem é um vício. Hoje estou convencido de que aqueles que se vendem por um preço mais alto são apenas aqueles que melhor conhecem a difícil arte de ocultar o vício que os possui. Tenho a certeza que muitos ficariam surpresos ao descobrirem o tipo de coisas capazes de seduzir aqueles que apenas se encontram de passagem.
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