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quarta-feira, 3 de abril de 2013

O início

            Há muito tempo que vivo em Buenos Aires. O tempo suficiente para que a vida que um dia deixei ameace dissolver-se finalmente na história e cair de vez no esquecimento. Hoje vejo claramente que da mesma maneira que um curso de água vai polindo a pedra e abrindo novos sulcos por onde escorrer, também o tempo nos vai moldando a memória, de acordo com o serpentear dos seus caprichos insondáveis. Com ele percebi não apenas que nos esquecemos mais de umas do que de outras coisas, segundo um critério pouco claro mas quase sempre surpreendente, mas também no quanto varia a noção que temos da sua passagem.
            No espaço de um ano tanto pode passar muito tempo, como tempo nenhum. Muitas vezes estamos tão concentrados no passado, que o decurso de doze meses não nos leve a qualquer lado. Nessas alturas, mesmo depois de todo aquele tempo ter passado por nós, sentimo-nos no ponto de partida, iguais ao que éramos no dia em que começámos. Aí, talvez possamos dizer que de facto parámos no tempo ou que para nós ele não chegou a passar. Mas se repararmos, é também nas alturas em que estamos mais presos aos nossos momentos menos felizes, que ficamos com a sensação de que o que passou foi afinal uma eternidade. Ou então que, depois de um ano cheio de aventuras e acontecimentos, nos seja fácil de notar afinal, no momento de olhar para trás, que tudo aquilo passou a correr. E mesmo nessas alturas, muitas vezes acabamos por nos ver obrigados a reconhecer, de tantas voltas a nossa vida deu, que durante todo aquele tempo crescemos, envelhecemos ou que a nossa vida de facto mudou. Porque uma grande mudança, ainda que ocorrida num curto espaço de tempo, pode levar a que nos tornemos irreconhecíveis, até para nós mesmos.
            Chega a ser engraçado como o tempo sem relógios tem destas coisas: de ser e de não ser ao mesmo tempo, consoante ele seja medido pelo que a sua passagem nos provoca, ou pela noção que dele vamos tendo. Dou um exemplo claro, tirado da minha experiência: há cerca de vinte anos mudei de cidade, de língua e de hemisfério, para um fuso horário totalmente diferente. E apesar de nem o ter sentido, todo o tempo que aqui passei foi feito de uma tamanha correria de pessoas, de lugares e de costumes, numa tal enxurrada de paixões e de abandonos, de amizades e de ausências, de alegrias e de saudades, que muito sinceramente, por tudo isto aqui me fez, mais me parece terem passado afinal quarenta.

            Eu sempre quis que o tempo importasse. Que não passasse por mim em vão, que me deixasse qualquer coisa, que me fizesse crescer. Talvez tenha vindo daí o gosto que sempre tive por relógios, sobretudo por relógios antigos. Talvez também por isso me tenha tornado, desde o dia em que aqui cheguei, num meticuloso registador de experiências, pessoas, cheiros, pensamentos e lugares, em pequenos cadernos numerados, que passaram a acompanhar-me em todas as alturas. São pequenos cadernos de capa preta, iguais aos que as crianças usam para os apontamentos da escola, que passei a trazer comigo, com as páginas presas por um elástico de borracha, que servia para impedir que se abrissem descontroladamente. E eram sempre do mesmo modelo, comprado numa papelaria mesmo aqui ao lado de minha casa, na Avenida Santa Fé. 
            Com os anos, os cadernos foram-se acumulando em cima da minha secretária, enchendo-se de tudo o que me ocorria, desde o assunto mais trivial ao episódio mais nebuloso de um passado que a cada dia se ia tornando mais longínquo, à custa de um futuro cada vez mais presente e inescapável. Umas vezes, com relatos floridos de acontecimentos passados; outras, deixando neles frases que pulavam insistentemente dentro da minha cabeça, sem qualquer direção definida, à procura de uma saída. 
            De início, aquilo que de um modo geral dominava os meus escritos e os meus pensamentos, era o passado então recente, da vida que tinha deixado para trás em Lisboa. Foram outros tempos, protagonizados no outro lado do mundo por alguém que hoje tenho dificuldade em reconhecer, e que me deixaram marcas profundas. Mas com o passar dos anos, a minha nova vida em Buenos Aires foi-se lentamente impondo, à medida em que a memória se decidia entre o que deixar para trás, e aquilo que devia ser acomodado nos lugares próprios da minha alma cada vez menos desconhecida.
            Vendo bem, este hábito iniciado mal cheguei a esta cidade, começou como uma forma de satisfazer o íntimo desejo de enterrar o meu passado. Escrevia para livrar-me de um enorme peso que ameaçava transbordar sobre tudo o resto. Na esperança de que, ao deixar nos cadernos o meu próprio sofrimento inconfessado, ficassem também definitivamente para trás todas as recordações da vida que havia deixado. Memórias que nenhum protagonista da minha nova vida em Buenos Aires poderá algum dia compreender

            Não tenho hoje qualquer contacto regular com nenhum daqueles que conheci durante a primeira metade da minha vida. Olhando para trás, é como se tivesse morrido e renascido num novo corpo e num novo hemisfério, para uma vida inteiramente nova. Depois de tudo o que se passou à volta daquele Natal de 1985, vi-me obrigado a largar o que tinha, e a crescer, praticamente de um dia para o outro, tudo o que não havia crescido até então. Tudo, exceto o que ficou guardado nos cadernos que ainda hoje conservo. Alinhados entre centenas de volumes, sobretudo de literatura jurídica, no meio da estante que fica por detrás da grande e antiga secretária em pau-preto, que ocupa o centro do meu pequeno escritório, no célebre Palácio Barolo.

            Com o passar dos anos, fui aos poucos e poucos abandonando a escrita e os cadernos. Julgo que nada contribuiu mais para isso do que a minha passagem pelos serviços secretos, sobretudo num período tão conturbado como aquele. Talvez seria de esperar que a minha vida de espião me tivesse tornado reservado, ou pelo menos mais reservado do que a maioria das pessoas. A partir do momento em que entramos nos serviços, deixamos tudo para trás. Perdemos a vida e a história, e ficamos entregues ao esquecimento, inteiramente ao serviço do país. Dizem que todos os agentes que não ficam pelo caminho acabam por aprender a arrumar o seu passado, distribuindo-o por várias gavetas, todas elas categorizadas de acordo com o princípio da necessidade de saber. E de tal maneira assim é, que muito recentemente ouvi um colega já antigo dizer, num misto de arrogância e de resignação, que o passado é como uma mulher de quem se gosta, porque é semelhante uma doença que leva tempo a sarar. Nunca cheguei a ver as coisas assim. Aliás, depois do que me aconteceu, fico contente por ter mantido os cadernos comigo, ainda que isso implicasse infringir algumas das regras do serviço. Assim, nem tudo ficou perdido.

            Até há muito pouco tempo, nunca tinha lido os meus cadernos. Não os tinha aberto sequer ― certamente não os mais antigos ― por uma espécie de pudor relativamente ao meu passado. Admito que talvez tivesse também um certo medo de que o desenterrar de memórias antigas pudesse soltar fantasmas difíceis de conter. Mas por serem cartas para um eu futuro, sempre tive para mim que os cadernos seriam abertos logo que a altura certa chegasse. Assim que os anos finalmente me dessem o distanciamento necessário para que me sentisse preparado para voltar a abri-los, um após o outro. 
            Os acontecimentos imediatamente anteriores à minha chegada a Buenos Aires tinham-me lançado afinal numa longa viagem à volta de mim mesmo. Uma viagem de que apenas agora me senti regressar, quando descobri que apenas estamos preparados para receber o amor das pessoas que amamos, quando descobrimos que já não precisamos delas. E para amá-las, quando mesmo assim, ainda as quisermos. 
            Passaram já muitos anos sem que eu tivesse esquecido a Inês. Passou também demasiado tempo desde que aquele miúdo, acabado de fazer vinte e três anos, aqui chegou. Tantos, que fiquei sem ter a certeza se ele ainda existia. E por isso mesmo, passei os últimos dias em arqueologias, lendo os meus estimados cadernos. Confesso que nada me tinha preparado para o que a sua leitura me iria proporcionar. Mas o momento tinha chegado. 

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