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segunda-feira, 15 de abril de 2013

o velho e o cardeal


            Naquele dia, o cardeal olhou para aquele velho impecavelmente bem vestido que tinha à sua frente e reparou no seu olhar envergonhado. O velho era um homem oriundo de uma família sem fortuna, fidalguia de província, simples por opção e generoso por natureza. Tinha sido bem-sucedido tanto nos negócios como na vida que levou. Apesar de ser um homem intencionalmente despojado e humilde, tinha como única extravagância o seu amor a automóveis e ao luxo de ter um carro onde pudesse caber a mulher e os seus oito filhos. Naquela bela tarde de domingo, o cardeal encontrava-se em sua casa numa visita de cortesia e de agradecimento. Por diversas vezes aquele velho tinha-lhe emprestado o seu Mercedes-Benz 600 Pullman landaulet, sempre que assim justificassem o critério do cardeal ou a solenidade da deslocação. 
            Estavam ambos sentados na longa mesa de pedra da eira da grande casa do velho, de costas para a casa e voltados para os campos que se estendiam a perder de vista, enquanto várias crianças ao longe brincavam. Tinham todos acabado de almoçar. A mulher do velho, as suas filhas e as duas criadas de cozinha levantavam a mesa e traziam mais uma das melhores garrafas de vinho que o velho guardava na sua famosa garrafeira.
            O cardeal então perguntou-lhe a razão de ser daquele seu olhar pensativo. Compungido, o velho confessou que na verdade não vivia a vida piedosa que julgava dele esperar o senhor cardeal. Não ia à missa, não frequentava a irmandade da paróquia, não assistia às procissões, e as únicas espécies sagradas em que tocava era o vinho da sua adega e os cozinhados da sua mulher. O cardeal então olhou para o velho e disse-lhe:
--- Sabes, João, os nossos olhos começam a perder qualidades logo desde o momento em que nascemos. Normalmente só reparamos nisto muito mais tarde, quando nos tornamos adultos e ganhamos aquilo a que damos o nome de vista cansada. Mas muito antes de isso acontecer, vão existindo várias coisas que, sem nos darmos conta, os nossos olhos deixam de poder ver. São coisas tão puras que a vista turva engana, e que por isso, vemos a certa altura melhor de olhos fechados porque só o coração as pode entender. Diz-me João, quem é que tu amas mais, a Cristo ou aos teus filhos?
            O homem olhou o cardeal ainda mais embaraçado com aquela pergunta que parecia feita para o enganar, ou pelo menos para destapar a sua enorme ignorância e falta de fé. Mas apesar de todo o temor reverencial que tinha pelo senhor cardeal, e como não sabia dizer nada que não fosse verdade, respondeu:
--- Perdoe-me o senhor cardeal, o Senhor tem o seu Cristo, mas para mim o meu Cristo são eles.
            Então, o cardeal levantou ligeiramente a cara e fechou os olhos com um leve sorriso, deixando que o sol lhe banhasse a cara. Depois, colocou ambas as mãos sobre a grande pedra de granito que servia de tampo da aquela enorme mesa de refeições e disse, como se estivesse a recitar as escrituras:
--- João, a tua fé te salvou. 
            Nesse momento, aquele velho cuja alma irrequieta havia impedido de ver o essencial, mas não de o praticar, começou a chorar sorrindo.
                Enquanto alguns se matam, mais ou menos lentamente, em obstinadas buscas até acabarem por descobrirem sozinhos, num remoto canto qualquer da terra, que a felicidade apenas se torna real quando partilhada, outros nascem conhecedores desta verdade que se revela a si mesma. Mas julgo que os restantes de nós passamos a maior parte dos dias ali pelo meio, uns menos conscientes e outros mais, vivendo esta procura quase até ao ponto de deixar que ela nos destrua. 
            Até ao dia em que, de repente, nos apercebemos daquilo que afinal de contas realmente importa. Esse dia é quase sempre o inicio de um longo percurso que consiste em finalmente aprendermos a avançar sem permitir que nos coloquemos no nosso próprio caminho. 
JAO

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