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quinta-feira, 4 de abril de 2013

Segundo dia

            Acordei a meio da manhã, de uma noite sem sonhos, ainda no sofá. Assim que me levantei, fui abrir as portadas da sala para descobrir que estava um dia morno de céu azul, já com uma leve brisa fresca, sinal de que o verão se aproximava do fim. A praia estava vazia e não havia qualquer outro sinal da tempestade da noite anterior, do que as marcas que a chuva tinha deixado na areia.
            Instalei de novo a mesa junto ao alpendre, entre as portadas abertas da sala e fui buscar um café forte. Depois, decidi fazer uma curta caminhada de pés descalços pela areia quente até junto da linha de água. 
            Nessa manhã, o mar estava revolto, e rugia com um barulho ensurdecedor. Do lado das dunas, existia uma paz absoluta, quase insuportável, em que o silêncio alternava com o violento calor do sol e da areia fervente. Assim que pisei a areia molhada, senti o alternar do calor do sol com a frescura da maresia que me refrescava a pele. No mar, tudo o que via mais se parecia com um campo de batalha, exercendo sobre mim tanto fascínio como o de uma fogueira a arder. As ondas quebravam de tal modo longe da costa que a partir dali mal podia ver o horizonte. Apenas mais ondas a quebrar, umas atrás das outras. Para onde quer que olhasse linhas intermináveis de espumas rolavam aproximando-se da praia, alternando com algumas zonas calmas onde o mar apresentava um azul metálico em que pairavam manchas de espuma dourada, como se de um animal ferido se tratasse. Depois das ondas explodirem na areia, as espumas iam e vinham alternadamente, seguidas pelo sonoro borbulhar que faziam enquanto recolhiam de volta ao mar.

            Tinham passado vários anos desde o dia em que descobrira aquela praia. Talvez por ser o ponto mais próximo do lugar de onde eu venho, que desde esse primeiro dia tenho a sensação de pertencer a este lugar. Tudo aqui me soa a familiar: o mesmo mar que nos liga e nos separa, os mesmos pinheiros mansos que entram pelo areal adentro, o assustador rugido das ondas que vêm de longe e abatem-se contra a areia de que é feito este meu castelo feito de dunas. Mas com o passar dos anos fui também sentindo que esta praia me pertencia, por todos os momentos que ali passei com muitos dos personagens do meu passado, alguns deles já desaparecidos. Por isso sempre que aqui chego apetece-me rever todos os recantos desta praia onde tantas vezes fui feliz. Como se a praia fosse um álbum de boas recordações que folheio enquanto a vou percorrendo. 
            Decidi por isso fazer uma caminhada pela areia. Olhei para a direita, depois para a esquerda, e escolhi um dos lados à sorte, como se ambos fossem dar ao mesmo lugar certo, bem para lá da linha do horizonte. 

            Hora e meia depois, enquanto regressava da minha caminhada para norte, pareceu-me ver ao longe um vulto parado no areal, ali para os lados de minha casa. De início pareceu tratar-se de alguém que vinha na minha direção, pelo que foi-se tornando mais nítido. Parecia ser o de uma mulher de longos cabelos negros, com uma túnica clara esvoaçante. Acelerei o passo, mas percebi que estava já a caminhar em direção ao povoado, um pouco mais para sul. Ainda ia distante quando cheguei à porção de praia que fica em frente a minha casa. Estava ofegante da minha corrida pela areia molhada. Olhando para o chão, notei num conjunto de pegadas na areia que guardavam a prova daquele desencontro. As pegadas mostravam que aquele vulto se aproximou do meu alpendre, tendo ali parado antes de voltar para trás. Teria sido alguém à minha procura? Não fazia sentido que chegasse vindo da praia em vez da estrada, a menos que fosse alguém que não tivesse problemas em ser seguido ou descoberto. Provavelmente seria apenas alguém que tivesse tido a mesma ideia que eu, e tivesse simplesmente resolvido dar uma caminhada pela praia. 
            Sorri e abanei a cabeça, voltando a pensar na pessoa paranóica e desconfiada que os últimos anos me tinham tornado. Tudo o que aprendi sobre técnicas de observação e a descodificação de sinais, tanto me ensinaram a ver para além das aparências, como a duvidar de tudo o que parece evidente. De tal maneira que muitas vezes julgo que nem mesmo os fantasmas me escapam, ou quem sabe seja eu que não lhes consiga escapar.
            Tal como os cadernos, também as pegadas que ali tinham ficado marcadas na areia, eram testemunhos de que alguém por ali tinha passado. Estava tudo ali, misturado com o sargaço que a maré cheia tinha espalhado pela praia. E tudo aquilo me cheirava a saudade. 
            Voltei para casa, onde tomei um duche morno seguido de uns calamares e um copo de vinho branco. Enquanto me preparava para mais um dia de escrita e regresso ao passado, sob a sombra do meu alpendre.



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