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quinta-feira, 30 de maio de 2013

Como era de esperar, depois dos dias que passei em Pinamar, esperava-me uma semana complicada no escritório. Reuniões, prazos a terminar, correspondência para despachar. O Paco levou-me três vezes a almoçar, só para ter a certeza de que estava tudo bem. Na verdade, todos estes dias foram passados numa espécie de zona intermédia de passagem entre duas possíveis existências, pensando se algum dia teria a coragem de realmente enviar aquela carta. Uma coisa era pensar. Outra, muito diferente, seria deixá-la no correio. Depois de o fazer, já não teria como voltar atrás. Todo este regresso ao passado que durante os últimos dias me tinha permitido estava a absorver-me para muito longe. Para um lugar qualquer que ficava entre o meu Buenos Aires presente e a minha Lisboa distante, muito para lá da minha querida e pacata cidade de Pinamar. Para um lugar perdido no meio do oceano, onde nem o tempo, nem o vento corriam sobre as águas paradas e mornas do equador.
Foi então que me lembrei daquele estranho sonho que me acordou, na madrugada do meu quarto dia em Pinamar. Parecia que a chave que se desfazia nas minhas mãos era agora aquela carta. A carta que agora me parecia como o único meio de dar o devido descanso aos fantasmas que durante todos estes anos tinham ficado suspensos entre este mundo e aquele.

Na sexta-feira ao fim da tarde, entrei num conhecido pub da Recoleta, por volta da hora de jantar. Mal cheguei, pedi um whisky e fiquei por uns momentos inclinado sobre o balcão, a olhar o vazio. Um barman fardado servia as bebidas com gestos precisos e silenciosos. De tal maneira que quase não se dava pela sua presença. No ar soava a música Bye Bye Blackbird, do Miles Davis, um jazz tão meu conhecido que me parecia vir de dentro. Num canto da sala ouvia-se um grupo falar mais alto apontando para uma televisão pendurada na parede. Através do fumo podia ver o presidente Néstor Kirchner dirigir-se à nação, presumo que numa importante comunicação. Noutros tempos ter-me ia importado com aquilo. Teria pensado nas implicações, nos segredos, nas possíveis instruções que depois daquilo poderiam vir de Lisboa. Mas eu já não estava interessado no que se passava do lado de fora da minha vida e das vidas daqueles que amava. Tinha-se instalado em mim um certo desencanto sobre tudo o que não me parecia ter uma ligação direta com o que se passava no interior do meu mundo secreto. Mas ao mesmo tempo, não deixava de ser irónico que ali estivesse eu, de olhos fixados num ponto distante que ficava bem para lá daquela parede, junto de alguém que se encontrava a meio mundo de distância dali.
Enquanto esperava pelo segundo whisky, reparei na parede que tinha à minha frente, nas costas do barman que me servia. Era forrada por uma madeira escura, preenchida em cima por uma enorme estante antiga, cheia de garrafas e copos invertidos, suspensos como morcegos. Mais abaixo, ao nível dos meus olhos, estavam pendurados espelhos de vários tamanhos, em lindas molduras de talha dourada, adornadas com entalhes de diferentes estilos. Talvez eles estivessem ali para mostrar àqueles que no fundo de um copo procuram as respostas às suas contradições antigas, que elas estão afinal enterradas bem no fundo de nós. Detidas em prisões de silêncio, à espera de serem libertadas a partir dos círculos mais profundos dos nossos tortuosos seres.

Nisto, sinto alguém a entrar no bar e a sentar-se no banco imediatamente ao lado do meu. Estranhei, porque era a única pessoa sentada naquele balcão. Mas assim que olhei discretamente, vi que era o meu tio. Assim que se sentou, pediu um conhaque e disse, naquele seu tom do costume, aparentemente desinteressado mas profundo:
― Como não estavas em casa, resolvi vir até aqui ver se te encontrava. À nossa!
Estava com o seu fato azul-marinho, de camisa branca de botão aberto e um lenço de seda claro no bolso da frente. Impecável como sempre. Não sei como me encontrou, sobretudo tendo em conta que não costumo frequentar aquele lugar. De qualquer maneira era bem-vindo. Podíamos ficar ali a noite inteira que ele nunca iria tentar saber o que é que eu fazia naquele lugar, sem outra companhia do que aquele copo onde morriam lentamente duas pedras de gelo. A ele bastava-lhe estar ali, para que eu pudesse desabafar, se assim o quisesse. Mesmo assim fiquei curioso:
― Como é que veio aqui parar? Eu podia estar num milhão de sítios diferentes.
Ele sorriu e assim permaneceu algum tempo, sem responder, com a sua invejável pose de galã, olhando para longe. Depois, deu mais um trago no seu conhaque e respondeu:
― Eu até podia dizer-te como é que cheguei aqui. Podia falar-te do tempo em que eu tinha grandes planos, do tempo em que deixei de me importar e do dia em que depois acordei. ― Disse, de olhos semicerrados, como se estivesse a olhar para uma luz. E continuou:
― Com os anos, percebi que não valia a pena perder tempo com arrependimentos, sabes porquê? Porque todos sonhamos ser perfeitos. Idealizamos demais, e acabamos quase sempre por ser demasiado duros connosco próprios. Concentra-te no essencial. O resto, deixa ir.
Os seus olhos olhavam em frente, através do balcão, para aquela parede pejada de espelhos. E enquanto acendia um cigarro continuou:
― Tu sabes que podes falar comigo não sabes? ― Disse, voltando a colocar o isqueiro no bolso do casaco e deixava o fumo sair, olhando-me de lado. Depois, tirou lentamente o cigarro da boca e para minha surpresa perguntou: ― passa-se alguma coisa contigo?
― Nada de especial, tio. Ando em altura de balanços. ― Disse, sentindo-me subitamente desconfortável. Aquela pergunta tinha-me deixado cercado, à procura de um caminho por onde fugir à admissão da falta de coragem que estava a sentir.
― Meu filho, o segredo não está em encontrarmos aquilo que idealizámos e que nunca vimos nem sabemos se existe. Está em descobrirmos que nada do que precisamos para ser felizes está fora de nós. E em percebermos que as melhores coisas que a vida tem estão escondidas atrás daquelas com que nos cruzamos todos os dias. ― E enquanto fumava, continuou: ― Essa desorientação toca a todos. É sinal que não estás a olhar para o sítio certo.
― Como assim?
― Nunca te aconteceu num dia, de manhã, ao ir para o escritório, repetindo um caminho que já fizeste centenas de vezes, notares de repente em qualquer coisa nova, qualquer coisa em que nunca tinhas reparado antes?
― Claro que já. Às vezes basta olhar para cima.
― Pois é. Quem vive à procura daquilo que não tem, acaba por não se descobrir nem a si próprio, nem às coisas com que se vai cruzando pela vida fora. Quem vive numa permanente busca daquilo que não tem, acaba quase sempre por ficar pelo caminho.
Ao ouvir aquilo olhei para o lado e permaneci de copo levantado, interrompendo o movimento de o levar à boca. Isto significaria o quê? Que devia ficar quieto ou avançar? A Diana faz parte da minha história. Uma parte inacabada, por resolver. Foi então que lhe perguntei, surpreendido:
― Então devemos fazer o quê tio? Deixar de procurar alcançar as coisas que queremos para nós?
Ele olhou-me nos olhos sobre o ombro, enquanto apagava o cigarro que tinha na mão, e disse sorrindo:
― Em primeiro lugar, é preciso deixar de ter medo. Medo de falhar. As pessoas precisam de se dar umas às outras como se não houvesse amanhã. ― Ao dizer isto, abriu os braços e notei nos seus olhos um fogo que não estava lá antes, uma faísca de indignação que o tomou de repente. ― Olhando à nossa volta, sobretudo para a tua geração, o que vemos, é que já ninguém dispensa a sua bolha particular de segurança, as suas portas blindadas, fechaduras, trancas e trincos, os seus telemóveis e seguros de vida e cintos de segurança. Já ninguém arrisca o pescoço pelos outros ou se atira de cabeça da prancha mais alta da piscina para conquistar a miúda mais gira do sítio.
Desatei a rir-me com o que dizia. Ele tinha razão. E enquanto falava gesticulando como um italiano, acendeu mais um cigarro. E continuou, dizendo:
― As pessoas têm medo. E é por causa desse medo, que o amor se tem tornado numa palavra vazia que acenamos ao longe uns aos outros, como uma bandeira, de ânimo leve e com consequências desastrosas. Uma palavra que nos apazigua e que nos enche de ilusão e conforto, mas sem um significado real porque não é realmente vivida. É por causa do medo que as pessoas se descartam umas às outras tão facilmente, com um simples estalar de dedos sempre que, por qualquer razão, a pessoa a quem se declarou amor deixa de servir, ou de fazer aquele sentido com que em tempos se idealizou. Aliás, nos dias que correm, não só o amor como o próprio Deus arriscam-se a perder curso legal na economia paralela dos afetos. Empacotados em caixotes empoeirados e relegados para as caves da memória, abandonados, porque causam alergia. Por causa do medo, o amor tornou-se ora numa doença a evitar, prevenir ou debelar, ora como a droga com que nos auto-medicamos constantemente, sob a forma das mais variadas promessas de que não temos verdadeira intenção de cumprir. Andamos todos de crista tolhida pelo medo. Foi por causa desse medo que o amor se tornou na droga dura dos tempos modernos. Sujeita a novas forças. Umas novas, outras nem por isso. Mas todas elas igualmente inconfessáveis. Eu até percebo que nos protejamos das desilusões. O que eu não percebo, é que as pessoas não vejam que ao fazerem isso, estão também a proteger-se desnecessariamente da própria vida.
Ao ouvir aquilo fiquei surpreso sobre como falava tão claramente para mim, ainda que não conhecesse as dúvidas que me tinham trazido àquele lugar. É verdade que agir tem os seus riscos, e é sempre mais fácil virar as costas. E talvez fosse o medo que me estava novamente a guiar na sua própria direção, levando-me a voltar as costas à decisão que certamente já teria tomado. Custava-me admitir que me faltava o arrojo e a resolução necessários para enviar aquela carta, que era tão sentida como inesperada para mim. Por isso contrapus, como se não quisesse continuar a ouvir:
― Mas tio, hoje em dia há outros valores. Hoje em dia já ninguém está para se chatear…
― É verdade. Mas mesmo assim, é importante não perdermos a capacidade para nos apaixonarmos. Eu posso já estar velho mas sei que termos a capacidade para nos apaixonarmos é a prova acabada de que ainda não sucumbimos ao mundo. Que não perdemos a guerra, que ainda não suicidámos a nossa criança interior. Repara: quem se apaixona fecha uma porta e abre outra. Fecha a porta de entrada dos problemas, angústias e desesperos da vida, porque vê no seu recém-encontrado amor a força, a solução e a saída para todos eles. Mas também não é menos verdade que abre uma outra porta que por vezes fica escancarada para nos marcar para toda a vida. É o obturador do coração, feito para abrir e fechar por breves instantes, apenas o tempo necessário para marcar na alma a fotografia de cada momento inesquecível.
Sorri e vi no velho uma ponta de nostalgia de quem via num daqueles espelhos, o reflexo de muitas histórias para contar.
― Mas temos que ter cuidado com o obturador. Se ficar aberto muito tempo, podemos ficar queimados...
― Pois, quando isso acontece, tudo passa para segundo plano e ficamos expostos aos caprichos dos outros e dos elementos. E aí, ou sofremos sozinhos essas queimaduras inúteis e devastadoras, curando as feridas e encaixando as derrotas de cabeça mais ou menos levantada, ou negociamos com o outro uma forma de escrevermos nas páginas ainda em branco do livro das nossas vidas, qualquer coisa que ainda possa ser aproveitada. Mas para isso é necessário mergulhar nas profundezas de quem gostamos para descobrir os cacos que ainda restam após a abertura descontrolada desse nosso obturador interior, e ainda assim regressarmos, de amor intacto.
― Isso não é nada fácil.
― Não, não é. Temos que manter a capacidade para nos apaixonarmos. Mas temos também de deixar de permitir-nos cair só porque, mal temos o que desejamos, voltamos a querer o que não temos. Como te disse, todos nós temos tudo o que precisamos para ser felizes. Só precisamos é de olhar para o que está à nossa volta.
― Como dizem os brasileiros, e tudo o que vier a mais, é bónus.
― É isso mesmo. E nunca te esqueças que todos nós, mesmo aqueles que não acreditam em milagres, desejam que eles aconteçam. Mas os milagres não existem a menos que aconteçam primeiro dentro de nós. É preciso perder o medo e confiar. Saber esperar para ver como o tempo é nosso amigo, pois além de ajudar a suavizar o passado, muitas vezes é ele mesmo, e mais ninguém, que acaba por destapar o que sentimos e revelar a pessoa que verdadeiramente somos. Porque é ele que nos dá as lições, que nos perdoa e que depois nos dá a redenção de que necessitamos.
― Passarmos das palavras a atos não é tão fácil assim.
Ele endireitou o indicador na minha direção, olhou-me nos olhos e disse:
― Pois não. Mas é uma coisa que tem de ser feita ainda que tenhamos de morrer a tentar. Esse é que é o bom combate. Fazer o milagre vir de dentro. Porque o amor não é nosso. Fomos feitos para senti-lo, isso é fácil. Mas criá-lo? Isso não é de nós. Talvez seja por isso que se acredita em Deus.

Depois de ouvir tudo aquilo, não pude conter as lágrimas, que tornei silenciosamente a empurrar para dentro. E poucos dias depois, lá enviei a carta para a última morada conhecida de Diana.

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