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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

uma espécie de relação musical


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"Com o passar dos anos, acabei por reparar que existe uma espécie de relação musical entre a vida e o amor. Porque tal como o silêncio está para a música, também a vida é o grande pano de fundo que ora preenchemos com harmonias, ora com os ruídos da nossa existência particular. E do mesmo modo que tanto fazem parte da música os sons como o silêncio, também o amor tem nesta vida tanto de dar, como de omitir, de ter paciência e de libertar.

Tantas vezes pensamos demais, julgamos demais, falamos demais. Esquecemo-nos que um dos maiores desafios a que somos chamados é o de aprendermos a fazer música com a vida que recebemos. A saber interpretar a melodia, ouvir para tocá-la no ritmo certo, e a cada passo saber alternar a hora certa de abraçar, e a hora certa de deixar ir. Criando harmonias e eliminando os ruídos desnecessários. De tal maneira que, ao nos despedirmos daqueles que amamos, os deixemos melhor do que estavam, no momento em que chegámos, muitas vezes sem ser convidados, ao chão sagrado das suas vidas."
 

JAO

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

noites portenhas




Quando não estava no La Biela ou a ajudar o meu tio nos seus afazeres diários, seguia a conhecer a noite portenha com os muitos amigos que aqui e ali fui fazendo. Não sei como é que está Lisboa hoje em dia, mas na noite de Buenos Aires existem casas para todos os vícios.
De inicio o que fez com que me apaixonasse por esta cidade foi o tango, que comecei a ouvir um pouco por toda a cidade e que rapidamente aprendi a acompanhar com o corpo. Masculina e triste, cheia de drama, sexualidade e paixão e onde a mulher manda com a sua tristeza indomada. Tudo embrulhado numa dança em que os corpos ora lutam ora se entrelaçam num abraço musical. Tornei-me assíduo frequentador das melhores tanguerias ou milongueras da cidade, sobretudo no bairro de San Telmo. Aos poucos e poucos o Tango transformou-se numa adição a que durante alguns anos não resisti. E que acabou por me transformar numa espécie de filho adotivo desta cidade.
Mas com o tempo, passei a frequentar todo o tipo de lugares, pois comecei a ser convidado para as diferentes festas que se faziam um pouco por toda a cidade, sobretudo nos bairros de Palermo, Recoleta Montserrat e San Telmo. Sempre tive facilidade em dar-me com todo o tipo de gente e acho que sobretudo o que eu gostava era de observar as pessoas, de as conhecer e de as testar. De tentar perceber os seus sinais, as suas contradições e os seus segredos. Sempre me fascinaram aquelas almas penadas que ficavam a agitar os seus corpos, até de madrugada. Apesar desse fascínio também eu acabei por me tornar, sem que o percebesse, numa destes personagens. Mas por mais que me deixasse envolver, o crepúsculo da madrugada nunca deixou de me despertar do torpor moral da noite. Como se o contacto com a luz de um novo dia, me recuperasse instantaneamente das ilusões da noite, fazendo-me aperceber dos seus enganos.

A noite é o lugar preferido daqueles que têm pressa para conhecer o seu destino. O preço para entrar começa por ser apenas o tempo. O tempo que nela passamos e o tempo que nela perdemos. Passado um tempo, é com o corpo que pagamos a nossa permanência naquele lugar. Mas se permanecermos tempo suficiente, antes mesmo que aquele se esgote, não raras vezes acabamos por pagar a estadia com a própria alma. Porque de facto, se há dias para todos os gostos, as noites, há-as para todos os vícios. E é preciso que estejamos preparados, se lhes quisermos sobreviver inteiros.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

o tempo

Há muito tempo que vivo em Buenos Aires. Muito, mas não demasiado. O suficiente para que a vida que deixei para trás ameace dissolver-se finalmente na história e cair de vez no esquecimento. Hoje vejo claramente que, da mesma maneira que um curso de água vai polindo a pedra e abrindo novos sulcos por onde passar, também o tempo nos molda a memória, conforme o serpentear dos seus caprichos insondáveis. De facto, não só temos tendência para nos esquecermos mais de umas coisas do que de outras, segundo um critério pouco claro mas quase sempre surpreendente, como para nos apercebermos que o tempo passa por nós a diferentes velocidades.
No espaço de um ano tanto pode passar muito tempo, como tempo nenhum. A dada altura podemos estar tão concentrados no passado, que o decurso de doze meses não nos leve a lado algum. Quando isso acontece, ainda que o tempo passe, continuamos no ponto de partida, iguais ao que éramos no dia em que começámos. E então, talvez possamos dizer que parámos no tempo ou que para nós ele não chegou a passar. Mas muitas vezes é também nas alturas em que estamos presos aos nossos tempos amargos, que ficamos com a sensação de que o tempo leva afinal, uma eternidade a passar.
Da mesma maneira, depois de um ano cheio de acontecimentos, fácil é de constatar, no momento de olhar para trás, que todo aquele tempo passou a correr. Mas mesmo então, acabamos muitas vezes por ser obrigados a reconhecer, que de tantas voltas que a vida dá, durante aquele período crescemos, envelhecemos ou que a nossa vida de facto mudou. Porque uma grande mudança, ainda que ocorrida num curto espaço de tempo, pode levar a que nos tornemos irreconhecíveis, até para nós mesmos.
Chega a ser engraçado como o tempo sem relógios tem destas coisas, de ser e de não ser ao mesmo tempo, consoante ele seja medido pelo que a sua passagem nos provoca, ou pela noção que temos dele. Dou um exemplo claro, da minha experiência pessoal: há cerca de vinte anos mudei de cidade, de língua e de hemisfério, para um fuso horário totalmente diferente. E apesar de nem ter sentido o passar dos anos, todo o tempo que aqui passei foi feito de uma tal correria de pessoas, de lugares e de costumes, numa tamanha enxurrada de paixões e de abandonos, de amizades e de ausências, de alegrias e de saudades, que muito sinceramente, pelo que tudo isto aqui me fez, mais me parece terem passado afinal quarenta.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

aqueles pequenos gestos


(...)
O meu escritório fica no oitavo andar do Palácio Barolo, um dos prédios mais altos de Buenos Aires. Aqui, cada coluna, arcada ou capitel está decorada com inscrições, gárgulas e símbolos da Divina Comédia, de Dante. Neste arranha-céus gótico, até os diferentes andares representam os níveis da vida depois da morte, descritos nos cantos daquela obra. Os andares de baixo representam o inferno, os do meio, o purgatório e os de cima, o céu. Tudo coroado por um farol cuja luz se vê do Uruguai. Faz assim todo o sentido que eu tenha passado estes últimos dias aqui num dos andares do Purgatório, transitando entre a secretária e o antigo sofá forrado a couro escuro em capitonê, que fica mesmo ao fundo do meu gabinete. Lendo avidamente nos meus cadernos, os muitos parágrafos escritos por mim mesmo, há tantos anos atrás. Pelo menos há anos suficientes para que, em quase todas as páginas fosse tropeçar em mais um detalhe esquecido, que tinha de ser cuidadosamente contornado por me levar a pensar se de facto tinha mesmo sido eu a viver aquilo tudo. Penso até que, não fosse a minha caligrafia fatigada, característica de quem escreve à velocidade do pensamento, e ainda estaria a duvidar se tudo o que ali via escrito era meu.

Servi mais um Bourbon duplo, retirado de um lote que me tinha sido oferecido por um cliente, há não muito tempo atrás. Os pensamentos serpenteavam descontrolados entre reflexões e memórias dispersas, e nem o copo que seguro chega para me tirar o assombro de ter encarado a minha história como nunca a tinha visto antes. O exercício de me afastar por um momento e de ver tudo que se passou detalhadamente e num curto espaço de tempo, lançou uma nova luz sobre o meu passado, incluindo sobre os espaços naturalmente silenciados pelos caprichos de uma memória tendenciosa. Fez-me voltar aos tempos passados com a Inês e pensar nas muitas vezes em que ao longo dos últimos anos me senti como um veterano de guerra, com um daqueles casos de stress pós-traumático, carregando nos ombros o peso de todos aqueles momentos geniais que juntos vivemos. Como aquele último dia do piquenique na praia. Em que fitei longamente todo aquele aparato, ela e o horizonte. Estava de óculos escuros para que ninguém me visse a chorar. E para não confrontar ninguém, incluindo eu, com todas aquelas emoções. Fá-lo-ia mais tarde. Foi um de vários dias cheios de acontecimentos que me encheram de sentido e de sinais que me fizeram ver além das coisas apenas visíveis. Como os seus cuidados, o seu cabelo desgrenhado, todo aquele cenário e as suas mãos generosas desenhando todos aqueles pequenos gestos que na altura me pareceram perfeitamente capazes de salvar o mundo.
(...)